Políticas baseadas em evidências, Políticas de segurança

É possível a normalização estatística entre países?

Escrito por: Cecilia Samanes: é um membro fundador da RISE. Sociólogo, Professor e Analista de Programação. Trabalhou no Ministério da Segurança da Argentina de 2011 a 2022.

Este artigo explica o processo desenvolvido no âmbito do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL[i]) para a harmonização das estatísticas criminais com um vasto e profundo intercâmbio e diálogo entre Estados.

É de notar que a Classificação Internacional do Crime para Fins Estatísticos (ICCS[ii]) do UNODC[iii] tem sido utilizada como unidade de referência. Esta classificação é organizada com base em categorias conceptuais[iv] baseadas em 4 critérios: «âmbito normativo relacionado com o acto ou evento (protecção dos direitos de propriedade, protecção da saúde, etc.); alvo do acto ou evento (por exemplo, pessoa, objecto, ambiente natural, estado, etc.); gravidade do acto ou evento (por exemplo, actos que causam a morte, actos que causam danos, etc.); meios utilizados na comissão do acto ou evento (por exemplo, por violência, ameaça de violência, etc.)» (ICCS, 2015, 13).

Antecedentes

Com base no «Acordo-Quadro de Cooperação em Matéria de Segurança Regional entre os Estados Partes e os Estados Associados do Mercosul[v], em 2012, foi emitida a Declaração de Buenos Aires, que estabeleceu o «compromisso de criar um sistema de indicadores acordados sobre o crime e a violência» entre os Estados Partes e os Estados Associados do Mercosul «com base na definição de critérios e processos destinados à qualidade da produção de informação sobre a violência e a criminalidade na esfera do Mercosul». Com este objectivo em mente, comprometeram-se a formar um grupo de trabalho[vi] com a missão de consolidar um mínimo de indicadores normalizados sobre violência e criminalidade para a região, tendo em conta os sistemas e metodologias desenvolvidos noutros organismos multilaterais em que os Estados do MERCOSUL participam; a promover um perfil profissional como gestor de informação e análise criminal; e «a designar um organismo com competência na área da gestão e estatística criminal».

Harmonização

A experiência da Argentina no processo de avaliação da qualidade estatística do Sistema Nacional de Informação Criminal (SNIC)[vii] foi particularmente útil na transferência das competências adquiridas para a tarefa iniciada no âmbito do MERCOSUL.

E, em virtude da Declaração de Buenos Aires e ancorada na experiência de gestão da qualidade estatística do SNIC, a Argentina está a promover a tarefa de harmonização dos registos criminais dos países do MERCOSUL. Em primeiro lugar, foram identificados alguns obstáculos, dada a impossibilidade de fazer comparações de dados criminais, incluindo os comunicados à ONU e publicados no sistema Surveys on Crime Trends (CTS), bem como a diferença entre países unitários que possuem sistemas únicos de registos criminais, enquanto que em países federais, como o Brasil ou a Argentina, a possibilidade de normalização dos registos depende de negociações entre os seus estados ou províncias, dada a autonomia dos governos federais.

Estas diferenças entre Estados podem ser agrupadas em três dimensões: a) legais, que incluem diferenças formais em termos de conceptualização normativa de cada tipo de crime e diferenças informais em termos de critérios de aplicação e práticas legais; b) estatísticas, que incluem as regras de contagem e sustentação de dados ao longo do tempo e também as formas de recolha, produção e aplicação (políticas públicas) desta informação; e c) eventos criminosos objectivos, que implicam a estrutura de oportunidades de crime de acordo com o território, probabilidade de detecção, e propensão para a denúncia.

Com base nestas premissas, alguns dos objectivos a serem trabalhados foram apresentados no Grupo de Trabalho de Segurança dos Cidadãos:

Dentro de um Estado, uma classificação uniforme das infracções baseada em códigos legais facilita a análise comparativa de dados e o intercâmbio de informações entre diferentes instituições da polícia e do sistema de justiça criminal. Por outro lado, a nível regional, são necessárias definições e classificações harmonizadas para a comparabilidade dos registos e para analisar as tendências regionais.

Neste sentido, foi reconhecida a necessidade de identificar:

  • as formas e práticas de registo de dados e os cálculos com que a informação é apresentada.
  • a diversidade de fontes de dados que respondem à especificidade de cada Estado, seja ele federal ou unitário.
  • os registos criminais associados aos códigos penais de cada Estado.

Mas também era necessário

  • Construir um instrumento que permitisse a relação de correspondência penal dadas as particularidades de cada Estado.
  • Promover a vontade de partilhar a informação necessária para construir uma ferramenta deste tipo.
  • Reforçar um compromisso para uma tarefa de colaboração entre Estados.

Nos trabalhos realizados entre Junho de 2018 e Maio de 2021, foi possível estabelecer a relação entre as conceptualizações normativas das infracções penais e as formas de medir e calcular alguns tipos de crimes utilizados por cada Membro e Estado Associado do MERCOSUL.

A Classificação Internacional do Crime para Fins Estatísticos (ICCS) do UNODC serviu como uma unidade de referência para estabelecer uma correspondência entre países. O ICCS define conceptualmente «categorias» de factos com subtipos tendo em conta o evento, o comportamento das pessoas envolvidas e outros elementos tais como infracções concomitantes[viii], e também estabelece claramente inclusões e exclusões para cada categoria e subcategoria. Poderia ser agarrado da seguinte forma:

Classificação Internacional do Crime para Fins Estatísticos (ICCS)

Nesta base, foi criada uma comparação entre as definições do código penal de cada estado e foi também estabelecido o âmbito dos registos estatísticos.

Resultados obtidos

Durante o processo acima descrito, tornou-se claro que era impossível alcançar a normalização, dadas as dificuldades concretas detectadas, que são descritas abaixo entre as conclusões, tais como as diferenças substanciais na regulamentação local e, sobretudo, na forma como os crimes são relatados nos sistemas estatísticos, para além das especificidades dos estados federais ou unitários.

Por esta razão, tornou-se essencial concentrar-se primeiro numa fase de diagnóstico e harmonização dos conceitos de crime utilizados no código penal de cada Estado, a fim de poder colaborar no futuro na elaboração e interpretação de estatísticas através da utilização de conceitos, unidades e terminologia comuns que tornariam os processos de tomada de decisão mais eficientes e os resultados obtidos mais precisos no âmbito do MERCOSUL.

Entendendo a harmonização como correspondência, foi realizado trabalho para identificar estas particularidades conceptuais a fim de encontrar semelhanças entre Estados, e entre Estados e a Classificação Internacional, para que os critérios utilizados na contagem estatística tivessem o mesmo objectivo de definir e medir da forma mais homogénea e comparável possível.

Com o inquérito[ix] realizado na primeira fase, foram revistos os sistemas nacionais de registo estatístico e as fontes de dados para cada Estado:

  • Argentina: o Sistema Nacional de Informação Criminal (SNIC), fonte policial em cada jurisdição, a Cidade Autónoma de Buenos Aires e as quatro Forças Federais e fontes judiciais em algumas jurisdições.
  • Brasil: Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisional e sobre Drogas – SINESP, baseado na polícia, embora o Sistema Nacional não esteja implementado em todos os estados federais.
  • Paraguai: Sistema de Informação da Polícia de Marandu, com base na polícia.
  • Uruguai: Sistema de Gestão de Segurança Pública que integra queixas judiciais com fontes policiais.
  • Estado Plurinacional da Bolívia, participou na conclusão da maioria dos crimes, mas não identificou o seu sistema estatístico.
  • Chile: Centro de Estudios y Análisis del Delito, utiliza um Código Único da Corporação Administrativa do Poder Judiciário para identificar crimes para fins administrativos e estatísticos.

Os intercâmbios enriquecedores realizados com base na análise rigorosa e meticulosa dos tipos de crime nas reuniões do EWG sobre Segurança dos Cidadãos facilitaram algumas descobertas interessantes:

  • Foi possível determinar a complementaridade entre os registos policiais e judiciais em alguns Estados, o que constitui um aspecto importante da recolha de dados exactos.
  • Os tipos de crime mais complexos a rever foram as mortes violentas devido a diferenças na sua inclusão nos registos (considerando homicídios intencionais, mortes duvidosas, todos os tipos de mortes não naturais), desaparecimentos e terrorismo, dado que nenhum dos Estados estabelece uma definição conceptual clara. Esta dificuldade tem um impacto negativo directo no registo de qualidade.
  • Existe uma falta de identificação que estabelece as causas de morte violenta nos eventos de «morte duvidosa» nos registos policiais (equivalente a «Eventos de intenção indeterminada» em mortes por causas externas de acordo com os registos de saúde de Argentina[x] com base na classificação internacional CIE-10[xi]), esta indeterminação implica um elevado nível de subregisto para as estatísticas criminais.
  • Em relação aos desaparecimentos, o Uruguai é o único país que conta este tipo de crimes, enquanto que a Argentina, Brasil e Bolívia não os registam nos sistemas e não os incluem na contagem estatística como desaparecimentos, mas apenas os registam no caso de a morte ser determinada. O Paraguai, por seu lado, inclui-o na secção ICCS de «actos que causam danos ou que se destinam a causar danos a pessoas».
  • Em relação ao homicídio intencional, há acordo entre os países de que se trata de mortes causadas com intenção de matar, tornando claro que se não houver intenção, esta é registada como mortes não intencionais, em concomitância com a Classificação Internacional do UNODC. Do mesmo modo, todos os países partilham a opinião de que o contexto e a modalidade da descrição específica do homicídio intencional é tido em conta para a investigação judicial, dado que as características e circunstâncias do crime implicam factores agravantes ou atenuantes no cálculo da pena a aplicar. As diferenças foram identificadas em termos de contagem:
    • Argentina, Paraguai e Uruguai incluem o femicídio, assassinato e crimes violentos.
    • Para a Bolívia, a emoção violenta implica uma análise punitiva específica e não está incluída na contagem de homicídios intencionais.
    • Brasil não inclui os homicídios realizados pelas suas forças policiais ou militares, mesmo considerando, nos seus códigos penais, que eles estão «no cumprimento do dever»; este é um aspecto central dado que não permite a comparabilidade estatística.
    • A Bolívia declara que a emoção violenta implica uma análise específica do aspecto punitivo e não a inclui na contagem de homicídios intencionais. O resto dos países indicam que se não houver malícia, esta é registada em mortes involuntárias.
  • Foi identificado que a informação estatística é apresentada por todos os Estados de acordo com as normas internacionais utilizadas, partilhando a forma de medição baseada em taxas e quantidades de actos criminosos e/ou pessoas num período de tempo e população desse território em análise, onde:
  • Quantidade = número total de eventos ou pessoas envolvidas num determinado período e território.
  • Taxa = (Número de incidentes ou pessoas envolvidas / População) * 100.000 habitantes.

Finalmente, é digno de nota que, nesses anos, o Paraguai e o Uruguai iniciaram o processo de avaliação da qualidade estatística com o UNODC e o INEGI, com base na experiência argentina.

Conclusões e Desafios

A fim de alcançar os objectivos assinados em 2012, no final dos trabalhos de diagnóstico e harmonização, foi proposto continuar com algumas linhas de trabalho:

  • Em princípio, publicar e divulgar a síntese obtida nos sítios Web oficiais dos Estados Partes e Estados Associados, bem como no sítio Web do UNODC e no próprio sítio Web do MERCOSUL.
  • Promover a sistematização da sistematização como instrumento de referência para as estatísticas criminais, permitindo uma reflexão sobre as políticas regionais de prevenção do crime e da violência que tenha em conta as diferenças e semelhanças acima mencionadas.
  • Finalmente, em 2022, no 30º aniversário da criação do MERCOSUL, as autoridades políticas de segurança e interior ratificaram a necessidade de aprofundar esta tarefa com o objectivo de alcançar uma normalização estatística entre Estados, não só dos actos criminosos mas também dos diferentes registos administrativos.

Mesmo que haja declarações políticas no MERCOSUL, a resposta à pergunta do título permanece por enquanto inconclusiva, porque a normalização estatística entre países é complexa, dado que depende de vários factores que vão para além da técnica. O principal factor é a decisão política dos governos no poder de implementar os acordos assinados, de compreender a necessidade de procurar pontos de contacto nos registos e conceitos, a fim de gerar planos “glocales” para prevenir crimes e as suas causas, deslocando o foco das as pessoas que cometem crimes. Podemos dizer que o diagnóstico e a harmonização estatística no MERCOSUL abre uma condição de possibilidade.


[i] O MERCOSUL é constituído por estados membros: a República da Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai; e os estados associados: o Estado Plurinacional da Bolívia, a República do Equador.

[ii] https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/crime/ICCS/ICCS_SPANISH_2016_web.pdf

[iii] O ICCS consiste em 11 categorias conceptuais que definem os actos criminosos em aspectos muito mais amplos do que apenas o bem jurídico prejudicado e a pessoa vitimada.

[iv] 1 Actos que causam a morte ou destinados a causar a morte; 2 Actos que causam danos ou destinados a causar danos a pessoas; 3 Actos prejudiciais de natureza sexual; 4 Actos contra bens que envolvem violência ou ameaça de violência contra pessoas; 5 Actos apenas contra bens; 6 Actos envolvendo o uso de substâncias psicoactivas ou outras drogas; 7 Actos envolvendo fraude, engano ou corrupção; 8 Actos contra a ordem pública, a autoridade e as disposições do Estado; 9 Actos contra a segurança pública e a segurança do Estado; 10 Actos contra o ambiente natural; e 11 Outros actos criminosos não classificados noutros lugares.

[v] http://www.sice.oas.org/trade/mrcsrs/decisions/dec1606s.pdf

[vi] Foi proposta a criação de um grupo de trabalho Ad Hoc no âmbito do Grupo de Trabalho Especializado em Segurança dos Cidadãos para a troca de experiências em políticas de segurança comunitária.

[vii] Em 2018, as estatísticas oficiais da Argentina -SNIC- obtiveram a mais alta classificação para a qualidade estatística. Esta avaliação foi realizada pelo Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e pelo Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI) do México, ambos peritos internacionais em gestão estatística e altamente respeitados pelo seu trabalho.

[viii] Como descrito no manual ICCS em «II. Princípios utilizados na Classificação Internacional».

[ix] Foi publicada uma reportagem na Revista MERCOPOL disponível em https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/atuacao-internacional/foros-e-redes/revista-mercopol-ndeg12-edicion-especial-argentina-1.pdf.

[x] http://www.deis.msal.gov.ar

[xi] A partir de 1997, as causas de morte são codificadas de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde Relacionados – Décima Revisão (CIE-10). https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/6282/Volume1.pdf

Foto de Fondo creado por jcomp – www.freepik.es

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