Jacqueline Sinhoretto, socióloga, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Brasil), pesquisadora do INCT-InEAC e do CNPq, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC-UFSCar). www.gevac.ufscar.br
Na última década, ao menos dois fatores contribuíram para colocar em evidência o tema do racismo no policiamento. Em nível mundial, acumularam-se os efeitos do encarceramento e da brutalidade policial dirigidos a grupos racialmente marcados, levando a sociedade civil a voltar as críticas ao modelo de policiamento formado pela doutrina anti-terror. Esta doutrina trouxe de volta ao campo da segurança interna categorias, procedimentos e tecnologias forjadas para a guerra ao inimigo, reforçando a militarização do policiamento. O segundo fator foi a emergência de um pensamento negro antirracista dedicado a pensar os mecanismos próprios do racismo nas polícias, justiça criminal e prisões.
O impacto desses dois fatores no Brasil foi o objeto de uma pesquisa em rede que coordenei ao longo de três anos (Sinhoretto, 2021), com coleta de dados em quatro estados brasileiros: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Grande do Sul e Distrito Federal. São os resultados desse esforço de investigação que apresento a seguir.
Foram colhidos e analisados os dados sobre desigualdades raciais produzidas pelo policiamento nas abordagens, nas prisões em flagrante e nas mortes cometidas em ações policiais. Os resultados são contundentes em comprovar que os policiais associam mais as pessoas negras a atitudes “suspeitas”, que o número de pessoas negras detidas em flagrante é muito maior (mesmo ponderando o número de brancos e negros na população em geral) e que as pessoas negras são alvo muito mais frequente de uso letal da força. A chance matemática de uma pessoa negra ser alvo de uma ação punitiva legal ou ilegal da polícia é 3 vezes maior do que a chance de um branco receber o mesmo tratamento. A depender do lugar, a chance de pessoas negras serem mortas pode chegar a ser até seis vezes maior.
Esse é o quadro obtido por meio de dados oficiais naqueles estados que divulgam suas estatísticas com as informações de cor/raça, pois a maioria sequer faz esse acompanhamento, o que dificulta discutir a questão com critérios objetivos e comparações balizadas.
Em geral, o leigo interpreta esse dado como indicador de que pessoas negras cometem mais crimes, por isso a polícia as para e prende com maior frequência. Isso não se sustenta em dados quando o estudo é aprofundado. Os crimes mais violentos ocorrem em áreas da cidade e horários que não são os mesmos em que as ações policiais mais violentas acontecem. Ou seja, olhando os dados com os quais as próprias polícias executam seu planejamento, não é possível deduzir que a violência da polícia seja uma resposta necessária à violência do crime. Ela é uma decisão de ação policial sobre o nível de força que irá usar contra a atitude “suspeita”. Foi isso que dezenas de policiais explicaram aos pesquisadores sobre como é a prática do policiamento.
Deveríamos concluir que os policiais são racistas porque é deles a decisão de parar uma pessoa ou de usar a força letal numa ocorrência, e eles tomam essa decisão com uma facilidade três vezes maior quando veem uma pessoa negra? Sim e não ao mesmo tempo. Os próprios policiais explicam que boa parte do seu trabalho se baseia na busca ativa de atitudes suspeitas, num trabalho descrito como preventivo do crime. Quando explicam o que seriam essas atitudes, a grande maioria dos policiais descreve características corporais, de vestimenta, de gestual, de modo de andar e olhar, e até de cortar o cabelo. Dessa forma, não são atitudes impessoais que eles procuram, mas tipos físicos considerados afeitos ao crime. Dito de outra forma, o trabalho policial depende fundamentalmente de estereótipos sobre o corpo e o tipo físico, o que dá margem ao racismo.
Antes de concluir que a culpa é dos maus policiais, é preciso interrogar o que fazem as organizações policiais para evitar que esse olhar discriminatório dos profissionais da segurança reproduza o racismo da sociedade brasileira. Muito pouco. Os cursos preparatórios não discutem diretamente os efeitos perversos da filtragem racial, que vão desde o constrangimento sistêmico das pessoas negras em seus deslocamentos diários, a produção do medo constante de ser vítima da violência da polícia, a desconfiança sistemática na relação polícia-sociedade, até a impunidade de pessoas brancas que cometem crimes sem se tornarem alvo da vigilância das guarnições. Em São Paulo, por exemplo, a maioria de presos por homicídio é de brancos – que não são normalmente vistos como suspeitos.
As polícias não ensinam outros métodos de como fazer o trabalho preventivo sem que os policiais tenham que usar o olhar sobre o corpo como única base de sua decisão de intervir. Mesmo a tecnologia de gestão de dados hoje empregada na ação policial está baseada em identificar corpos e rostos suspeitos e destacá-los da multidão. Mapas criminológicos, câmeras, tablets e celulares são apoios tecnológicos ao mesmo velho método de “reconhecer” as marcas da mente criminosa no corpo (Sinhoretto et al, 2022). A diferença entre o que se fazia no tempo das teorias do racismo científico é que os aparatos tecnológicos de hoje custam muito mais dinheiro aos cofres públicos.
Os policiais negros ouvidos pela pesquisa sabem que o método é discriminatório e violento. Eles contam situações em que são parados em blitzes de trânsito dirigindo os carros que seus salários podem comprar, mas que não são comuns nas camadas sociais de que são originários. Contam do receio que sentem das situações em que seus colegas em serviço podem considerar suspeito que negros estejam dirigindo bons carros. Os policiais nascidos nas periferias também apontam o erro de achar que a roupa defina o comportamento criminoso, pois a juventude das periferias se veste de um modo muito parecido. Uma policial contou como se sente quando seus colegas decidem parar pessoas pela roupa que estão usando, pois aquela roupa “marcada” é a que também usam seus irmãos e primos, jovens negros das periferias.
Os policiais também afirmam o orgulho de participar de uma corporação que emprega profissionais negros e favorece sua ascensão social, por meio do concurso público. Para profissionais negros que se tornam comandantes de área, que têm a oportunidade de estudar, de participar de espaços de deliberação pública, a profissão policial foi o caminho seguro de obter respeito e melhoria de vida para sua família. Como um policial negro poderia admitir, sem mediações, que essa corporação que o acolheu e o incentivou reproduz o racismo?
Problemas complexos não tem respostas simples. Os policiais hoje são parte ativa da política do país, querem sair da posição de quem apenas cumpre ordens para serem os responsáveis por decidir os rumos da sociedade. São hoje uma força com poder de influenciar a política, com milhares de candidaturas pelo país. Não são passivos diante das questões sociais do nosso tempo. Policiais e polícias tem um papel diante da injustiça histórica que produz o racismo nas formas de fazer o policiamento. É a hora de discutirmos a sério a questão, nos conteúdos de formação, nos padrões de policiar, na filtragem racial, nas formas de medir o sucesso da ação policial. Hora de pensar o papel de braço armado que sufoca a questão social. O fato de o racismo ser sistêmico não pode justificar a omissão da geração presente em derrotá-lo.
Referências
SINHORETTO, J. (ED.). Policiamento ostensivo e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime. Rio de Janeiro: Autografia, 2021.
SINHORETTO, J.; CEDRO, A.; MACEDO, H. New Technologies and Racism in Ostensive Policing in São Paulo. Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 15, n. 3, p. 803–826, 2 set. 2022