Políticas de segurança

Considerações sobre o modelo de policiamento

Escrito por: Amadeu Recasens i Brunet

Palavras-chave: #PolicialModel #Security Policies

Um modelo policial não pode e não deve ser visto como acabado, mas é uma realidade em permanente construção

(*) Em termos gerais, o atual modelo de polícia espanhola, que nasceu com a democracia e a Constituição de 1978, é um modelo falho, mas não inexistente. É malsucedido porque possui um conjunto de vícios fundamentais que o tornam inadequado para uma sociedade moderna.

A passagem da ditadura para a democracia suscitou a necessidade de uma mudança social, cultural e institucional, que deveria ter sido radical, visto que se tratou de uma mudança de regime político diametralmente oposto ao anterior. Mas isso não foi possível devido ao peso dos chamados “poderes constituídos” do antigo regime, aliado à falta de força / poder daqueles que defendiam uma mudança radical. Assim, uma democracia tutelada foi alcançada por meio de um compromisso híbrido que veio a ser chamado de «consenso». Nesse contexto, foi forjado o fracassado modelo policial, pressionado pela resistência à mudança de grande parte das forças de segurança e do exército (naquela época, a polícia central era militarizada, a polícia local foi relegada a um mero papel auxiliar, e os autônomos ainda eram praticamente inexistentes ou muito incipientes). O modelo da polícia espanhola daqueles anos foi, portanto, feito sem os devidos critérios transversais e sem assegurar o interesse público que está no centro desse desenvolvimento.

A situação atual, apesar de apresentar certa aparência de normalidade, é herdeira dessas deficiências iniciais, e isso se traduz em problemas e disfunções, dentre as quais podemos citar, por exemplo: sobreposições de forças policiais; falta de coordenação e pouca transferência de informações; escassa incorporação de mulheres à polícia (o que implica evidente masculinização e até machismo corporativo); um conceito autoritário de poder; uso impreciso da violência; presença de lacunas formativas importantes; ou atraso na incorporação de novas tecnologias, entre outras deficiências.

Tudo isso permite afirmar que o atual modelo policial espanhol existe, mas como um modelo fracassado e com disfunções significativas. Você pode tentar reformar e flutuar novamente, mas seus vícios (ocultos e visíveis) ainda estarão lá, com uma obsolescência a mais que a passagem do tempo só vai acentuar. Se fazer mais do mesmo não resolver o problema, talvez seja necessário pensar em fazer algo diferente, mas sem esquecer que qualquer proposta de modelo de polícia deve vir acompanhada de um modelo de segurança, justiça e uma visão abrangente do modelo de sociedade em que se insere.

Uma sociedade baseada no pleno reconhecimento dos direitos humanos e das liberdades requer repensar o modelo tradicional de segurança desenvolvido pelos Estados de Westfalen. Impõe-se uma mudança de paradigma, no qual deixa-se de pensar que segurança remete-se à segurança do Estado e coloca-se a pessoa como destinatário primário, vinculando-se ao conceito de desenvolvimento humano e com os direitos humanos como eixo central dessa segurança.

Neste contexto, é necessário que o modelo policial se alinhe nessa direcção, o que implica uma importante transformação cultural, que por sua vez só se consegue através de mudanças importantes ao nível funcional e organizacional, cujo impulso corresponde essencialmente a às instituições, às administrações, aos cidadãos e à própria polícia.

É necessário inserir o modelo policial em um modelo de segurança e nas respectivas políticas de segurança pública, nas quais a polícia não é mais o único ator, nem mesmo o ator principal. Constituem-se como um ator importante, mas mais um, em concomitância / cooperação com outros atores e com o conjunto de recursos disponíveis na distribuição estabelecida em determinado momento. Também deve ser levado em consideração que a variabilidade e o uso de tais recursos são atualmente altamente voláteis e mutáveis, o que requer uma (re) adaptação constante que dificilmente é compatível com processos regulatórios lentos e corporações policiais massivas. A adaptação exige fórmulas que permitam combinar a agilidade com as garantias e direitos das sociedades democraticamente avançadas.

O que foi levantado até agora nos leva a formular um conjunto de considerações, provavelmente válidas não só para o modelo policial e de segurança espanhol, mas também para muitos modelos que buscam desenvolver-se em sociedades que aspiram melhorar seus ambientes democráticos:

A primeira consiste na necessidade de passar da ideia de ordem para a de segurança, adotando em termos gerais a ideia de segurança humana (no sentido de atender às necessidades humanas básicas) e pressupondo que suas políticas só possam ser elaboradas. e ser executada em um modelo de coprodução real e efetiva entre instituições e cidadãos. Assumir também um conceito transversal de segurança pública que incorpora o planejamento urbano, serviços de limpeza, iluminação, ruído e, em geral, a utilização partilhada e pacífica dos espaços públicos e outros elementos contextuais que evitam a sensação de insegurança e aumentam a qualidade de vida.

A segunda assenta na necessária geração de confiança nas forças de segurança e na adaptação a elas de mecanismos de controle (interno e externo), formação, gestão e autonomia, que garantam a sua harmonia com a sociedade e as suas realidades. Um modelo policial moderno deve ser descentralizado e com alta capacidade de autonomia para suas unidades e até  seus agentes, que devem tomar decisões e resolver situações em curtos períodos de tempo.

A terceira contribuição é reconhecer que as organizações corporativas verticais e hierárquicas não têm capacidade suficiente para responder à crescente complexidade do mundo moderno. Isto requer uma organização policial mais horizontal, bem como uma mudança importante de cultura para orientar o modelo policial para uma nova cultura de segurança, uma cultura de cooperação inter-corporativa e interinstitucional, baseada na lealdade e na transversalidade.

A quarta levanta o compromisso com a cidadania, que deve se refletir na coprodução das políticas de segurança pública, desde as mais concretas e direcionadas até o estabelecimento das diretrizes para a formulação do novo modelo policial.

A quinta consideração é a constatação da necessidade de uma nova profissão policial. Em um modelo preventivo, que prioriza a proximidade, o conhecimento do território e o desenvolvimento harmonioso do espaço público e seus usos, é importante redefinir o papel da polícia. Órgãos autorreferenciais (corporativistas), separados dos poderes democráticos e dos cidadãos e operando sob o primado de intervenções reativas, não podem constituir o corpo de um modelo baseado no atendimento ao cidadão, na resolução de conflitos, na promoção da convivência e na prevenção.

Para desenvolver com eficácia as considerações aqui delineadas, surgem alguns elementos de indiscutível urgência, que devem delinear de imediato as premissas para um caminho de mais longo prazo. Dentre eles podemos citar:

a) Redefinição de órgãos e funções. Profissionalização da polícia. Um policial profissional deve dar prioridade ao seu pertencimento à profissão antes de sua integração em um órgão,

b) Estabelecimento e desenvolvimento de políticas de segurança pública coproduzidas, rigorosas, transparentes e avaliadas.

c) Desenvolvimento de um modelo de inteligência policial para o estabelecimento de um modelo de prevenção baseado na antecipação e no planejamento transversal; centrado nos fatos e suas causas, ao invés da geração de protótipos e estereótipos de criminosos. Isso tem se mostrado muito mais eficaz e eficiente do que qualquer modelo reativo.

d) Implementação de um modelo transparente de comunicação e feedback com os cidadãos.

E, finalmente, é necessário levar em consideração os aspectos organizacionais e econômicos; preparar planos diretores da polícia; acompanhar cada proposta com uma análise de custos econômicos e de oportunidade; avaliar e otimizar recursos; desburocratizar a polícia para colocar o máximo de tropas nas tarefas operacionais; realizar análise de dimensionamento; levar em consideração as repercussões trabalhistas das ações desenvolvidas; ter um modelo de formação claro … isso entre tantas outras questões que devem ser analisadas num contínuo acompanhamento, estudo e revisão do modelo policial.

Um modelo policial não pode e não deve ser visto como acabado, mas é uma realidade em permanente construção no dia-a-dia da polícia e da atividade social como mais um elemento da construção e do desenvolvimento de uma sociedade democrática.

Um modelo policial pleno só será alcançado por meio de um trabalho intenso das instituições para reformar a polícia no quadro mais amplo de segurança e por meio de uma corresponsabilidade dos cidadãos como ator essencial na construção do que deveria ser o objetivo mais amplo: um modelo de segurança. aceitável e assumido pela sociedade a que pertence e à qual é devido.

(*) Este escrito se baseia em uma intervenção perante a Comissão para o Estudo do modelo policial do século XXI (diário de sessões do Congresso dos Deputados nº 649, ano 2018: https://www.congreso.es/public_oficial / L12 / CONG / DS / CO / DSCD-12-CO-649.PDF) e foi desenvolvida em artigo na Revista Sobiranies (19/03/2021).

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